domingo, 16 de dezembro de 2012


Ele se percebia atrelado a um pouco de café. O vaso era pequeno em tanta angústia contida para único ser vivente. Para que se corram rios, são necessárias gotas minúsculas de água corrente: não é bastante, ao pensamento, mais que uma dose do adubo divino. O líquido negro, quente, adentrava, aos goles, a garganta e os sonhos: cansados, úmidos, desfeitos, presos, dissimulados. Não buscava outra coisa senão as próprias sensações desfeitas no último passo perdido numa noite qualquer, anterior à sua sublime divagação hodierna. Não passava mais que o tempo do amargor da bebida à boca. Negras a xícara, a miséria, as lembranças.
         Ela passara, lentamente, observando o olhar quase sagrado daquele homem semi-inerte. Os únicos movimentos eram o da xícara à boca. Não imaginava ela que os pensamentos do senhor iam muito além dos goles. Que os tremores da destra refletiam as dores contidas na alma. Lições de amor profano imbricadas ao amor divino perpassavam todas as constelações abatidas pela luz da manhã que poderia vir depois daquele pedaço ansioso de tempo. Sabia que não seria vítima do homem. Nem dos seus pensamentos. Apenas o observava por ser incomum a tudo quanto já presenciara. Sabia da sua inconstância de paz e do desespero da alma: o movimento brusco de xícara-boca revelava muito do que pesava nos olhos.
         Café amargo, sem açúcar. Não havia necessidade do doce. O vento já não balançava o verde pendão atado a terra. O forte brilho da luz refletida sobre as folhas da cana de açúcar já não mais era visto. Nem os sonhos traziam a marca do amor doce feito no canavial, escondido da matriarca e do patriarca, além da família da jovem moça que corria tal qual louca medrosa de ser pega pelos capachos do pai. Tudo era comum, posto não escaparem todas jovens moças da guarda peleja do ex-jovem então ancião.  A grama verde, dos sonhos antigos, já não preenchia os espaços ocultos da visão que, no passado, fora eterna. É que a eternidade dura o espaço de tempo que lhe é necessário para um novo e perene início.
         Chovia. Não era tarde, todavia, nem tão cedo. Fazia-se manhã. Uma como tantas outras comuns, para alguns; incomuns, para tantos outros. Passavam os mais variados tipos à frente do café. Um jovem apressado esquecera os pensamentos e seguia a jornada. A moça lenta corria em pensamentos que não refletiam os passos. O tempo era causa e conseqüência de quem o sofria. Por hoje, o tempo não se passa, se gasta, da forma como tenha dito algum historiador inglês do século XX. Uns não olhavam os outros. O tempo, lá fora, era uma gota de sangue derramada na inércia necessária ao homem do café.
         Não parecia que esperasse alguém. Deveria estar aguardando as novas fazes de si mesmo, numa angústia superior ao trato das suas breves idéias, carcomidas e lavadas pela chuva que não lhe atingia. E tudo era verdadeiro. Nessa hora, o odor do canavial molhado voltava ao pensamento como ave de rapina, tentando devorar a carniça já apodrecida. Mas fazia tanto tempo, e estava tudo tão imóvel, que talvez não houvesse apodrecido, no entanto, curtido na memória.